sexta-feira, fevereiro 09, 2007

comida, propriedade e lei

Hoje, na linha azul do Metro de Lisboa, um homem de Leste com ar de quem vinha da obras sentou-se no banco em frente ao meu. Devia ter poucas horas de sono, então adormeceu e deixou cair o bilhete que tinha na mão. Esperei que ele acordasse nos solavancos de uma partida ou chegada e dei-lhe o bilhete, ao que ele agradeceu muito. Passado um curto espaço de tempo, ele perguntou-me "do nada":
- Roubar comida é crime?
- É.
- Porquê?
- Porque é contra a lei.
A pressa da saída só deu para esta troca de palavras. Mas fiquei a pensar, como explicar a uma pessoa que passa fome e provavelmente vive cá em situação ilegal a importância de cumprir a lei? Naturalmente, como muitos homens até hoje, este homem interrogava-se quanto à legitimidade da propriedade. Gracchus Babeuf (1760-1797) dizia que a propriedade é odiosa no seu princípio e mortífera nos seus efeitos, e George Bernard Shaw (1856-1950) classificou a propriedade como o roubo organizado: Property is organised robbery. Este homem deliciar-se-ia com estas citações apaixonantes, mas nem por isso menos demagógicas.
A propriedade é de facto de origem questionável: porque é que aquele homem tem direito àquele terreno e eu não? Porque é que não posso roubar fruta, se quem a tem também a roubou à terra, e dela se apropriou? Este discurso, como vemos pelas datas, já cheira a mofo de tantos anos que tem. Desde Platão até ao iluminismo e aos dias de hoje. A propriedade como objecto de cobiça, de invejas e de guerras. Tudo isso. Os comunismos e os tribalismos. Sim, tudo isso. E na práctica? Sentimos a necessidade de rentabilizar a terra para dela tirarmos melhor proveito para sobrevivermos. Como? Com propriedade privada. Propriedade privada é propriedade estimada e rentável. Baldios é balda, onde ninguém tem brio porque não sente aquilo como seu. Já dizia o Aristóteles, criticando Platão.
A propriedade privada deve ter uma base de aceitação popular para existir. Daí as leis que protegem a propriedade privada. As leis só têm legitimidade quando elaboradas pelo povo, por exemplo através dos representantes que tem no Parlamento ou através do Governo popularmente eleito e que também tem poder legislativo. Roubo da propriedade é crime porque a lei assim o diz. O povo assim quer.
Percebo o homem de leste, muitas pessoas o perceberam na História, bem antes de ele e eu existirmos. Condições extremas de pobreza fazem com que se ponha tudo em causa, até a não legitimidade de um crime. É revoltante saber que muita comida é deitada fora nos restaurantes, por exemplo. Mas até o sistema mais perfeito tem falhas, que dificilmente serão colmatadas. Em todo o caso, ter consciência que elas existem, já é bom. Mas também é importante não cairmos em romantismos demagógicos e olharmos a sociedade de uma forma pragmática.
Obrigado, senhor de Leste. Não está assim tão a leste da realidade. Mas espero que tenha ficado a pensar na virtude da lei, e principalmente espero que a vida lhe corra melhor, de preferência sem roubos.

2 comentários:

Anónimo disse...

«La propriété c'est le vol», disse Proudhon. E já não me lembro quem disse que «propriedade privada» significa «privar alguém da propriedade».
Não, rapaz. Se o Nicolai tivesse gamado uma maçã no Pingo Doce, isso seria menos crime do que ficares-lhe tu com o bilhete de metro.
«La propriété c'est le vol»: não só o roubo, mas o voo. Quem a tem, chama-lhe sua. Pode voar sobre o problema, pois não sente o buraco no estômago.

O Internauta Descerebrado.

Sandokan disse...

Caro Internauta,
Faltava-me o Proudhon e uma série de outros entusiastas do "roubo". Mas... e a concretização disso? Uma coisa é a preocupação pela sobrevivência onde, no limite, se rouba (e aí também é preciso ter cuidado).
Outra coisa é o passo seguinte que esses autores defendem, que é a abolição da propriedade privada para satisfazer as suas invejas.
Ainda falta o lobo Mao, o Tsé Tung, com "a terra para quem a cultiva". Também é uma ideia bonita, só que dificil de implementar e mesmo assim teve maos resultados prácticos.
Apesar disso, reconheço que todos estes autores nos ajudam a pensar na origem e legitimidade da propriedade e fazem com que aumente a responsabilidade que temos (pelo menos em mim tem esse efeito) para com as nossas próprias coisas.

Um abraço descerebrado