domingo, fevereiro 04, 2007

maus (ab)usos da religião e da política

Nos dias de hoje, como em todos os dias até hoje, há políticos que têm a tentação de se estenderem para além da sua área legítima de acção, tal como há sacerdotes (de todas as religiões) que são tentados na mesma essência.

A palavra "religião" pode ter duas origens distintas: "religere" e "religare". Religere, no sentido de Cícero de nos voltarmos para dentro num exercício de séria instroespecção e assim nos encontrarmos, procurando-nos na nossa própria profundidade. Religare, no sentido de nos ligarmos de novo ao divino que nos criou e estabelecermos contacto com ele, aprendendo com os seus ensinamentos e admirando a obra da criação. Ambas as origens da palavra "religião" nos interessam para melhor percebermos aquilo que aqui tratamos.

Cada religião traz-nos a proposta de conduta moral que, no seu entender, é a que melhor nos conduz ao reencontro com o divino. Por isso, as religiões influenciam o nosso comportamento, nomeadamente em sociedade. Um sacerdote sempre foi um homem de grande poder, basta olharmos para a pirâmide hierárquica de antigas civilizações como a egípcia. Assim, é também preciso termos consciência que em nome da religião se podem dar verdadeiros abusos de poder, conduzindo o mais distraído ao que o sacerdote - humano como nós - possa querer, com os seus naturais desejos pessoais, culturais ou políticos.

Tudo o que estravaza a pura intenção da religião, que é religar-nos ao divino, não deve ser colado à mensagem de cada religião. O islão é uma religião? Certamente, mas não só: é também um projecto político de conquista do Mundo. O protestantismo é uma religião? Claro que sim, mas tem também ambições sociológicas, como Max Weber nos ajuda a perceber na sua análise do espírito capitalista. O catolicismo é uma religião? Sim, mas também foi um instrumento de colonização em Novos Mundos.

Todas as religiões são potencialmente futuros veículos de abuso por parte de algum espertinho que tenha o poder da persuasão. Mas devemos separar todos os excessos da religião, pois esses excessos não são religião, embora possamos estar tentados a pensar que é a religião que os produz. Normalmente não, quem os produz é um homem, deslumbrado com o poder que tem entre mãos.

No outro dia, ouvi dois sábios "professores doutores" elogiando os países islâmicos, pela sua capacidade de terem uma política religiosa do império da religião política. "Admiro muito aqueles países que não têm medo de unir tudo aquilo que é cultural, inclusivamente a religião e a política", dizia um. "Eu não o teria dito melhor, meu caro", dizia o outro.

Não percebo como ainda insistimos em brincar às políticas misturadas com religião. Não dá para ver que este cocktail sempre deu mau resultado? Fundamentalismos religiosos não existem. Não metam a religião ao barulho, isso não tem que ver com religião. Fundamentalismos pessoais, isso sim, é disso que se trata. E são sempre um erro, pois conduzem a paixões políticas incontroláveis e pouco férteis em razão. Ademais, descredibilizam a religião.

Já Jesus dizia (e posteriormente São Paulo repetiu), "A César o que é de César, a Deus o que é de Deus". Oxalá sempre nos lembrássemos disto, principalmente aqueles que têm tempo de antena persuasiva. Tal poder deverá ser usado com a maior responsabilidade. O primeiro filme do Homem Aranha tem um lema: "With great power, comes great responsability". Mas espero que não seja um lema só para heróis.

E quando a autoridade de César colide com a autoridade de Deus? Essa é matéria para outro postal. Para já, fico contente se não nos esquecermos de separar os excessos da religião dela própria. Porque embora a comunidade religiosa seja importante para o culto, a religião não se deve resumir a isso. Deverá haver sempre um espaço para a relação pessoal entre o "eu" e o divino. Esse espaço é pessoal, íntimo e construtivamente (porque nos contrói) crítico. Há um diálogo com o divino que modera as nossas posições e nos traz bom-senso e aprendizagem.

Quando escutarmos um discurso religioso, não tenhamos medo de desvalorizar alguma mensagem política que o orador possa proferir. Essa mensagem vale o que valem as suas palavras como cidadão, e não como sacerdote ou profeta. E como cidadão, deveria escolher outro cenário para pregar política. Não esqueçamos também que a política às vezes invade os terrenos da moral e do foro pessoal da religião (como por exemplo neste caso recente do aborto). Quanto a estes aspectos, é desejável que os sacerdotes se pronunciem, pois são matérias onde os sacerdotes foram os invadidos e não os invasores.

4 comentários:

Tiago disse...

Um Manifesto! Gostei muito, apesar de não me admirar muito... esses Professores doutores da Católica na Clássica não teriam auditório! Concordo, exceptuando o seguinte: a Política não invadiu a esfera da Religião em relação ao Direito à Vida ou aos Direitos do Homem em geral... ela invadiu a esfera da Filosofia, do Homem pensado pelo homem... posterior a Deus mas anterior à constituição do "corpo" da Igreja Católica Romana.
Que bela composição de Bom-Senso!

Sandokan disse...

Grande Tiago, curiosamente desses dois professores doutores, um era da Catolica e outro da Classica. Quanto à Filosofia, penso que a partir de um certo nível, a Filosofia é também religiosa. Seja porque crê e tem fé em alguns pressupostos morais para avançar para outros pressupostos, seja porque precisa de se relacionar, a partir desse nível, com uma luz, uma ideia de bem que ilumina platónica, enfim, relaciona-se com o divino.

Mas claro que esta questão do valor da vida vem muito antes da Igreja Catolica ter aparecido, por isso não me refiro a uma religiao em particular. Nisso concordo contigo. As grandes religiões são, aliás, todas pelo "não" neste referendo sanguinário.

No último dia 1, por exemplo, assistimos a um claro abuso da palavra religiosa, que se confundiu tristemente com uma mensagem claramente política por parte de quem a proferiu. Reparaste?

Um grande abraço e obrigado pelo comentário

J disse...

António,

Cada vez mais, as pessoas de áreas especificas tem tendência a "invadir " outras áreas, uma coisa é falarmos como cidadãos dármos a nossa opinião pessoal, outra coisa é falarmos como profissionais numa determinada área etc. Acho que a frase de Cristo " A César o que é de César, a Deus o que é de Deus " resume o essencial do que disseste.

Também gostava que soubesses que gostei muito da maneira como introduziste o tema, principalmente dando a conhecer a maneira como as Religiões, que são feitas de Homens seres limitados e imperfeitos podem errar.

Um grande beijinho em Cristo

Sandokan disse...

Ola Joana! Obrigado pelo comentário, é sempre um gosto receber-te. Os homens podem errar, mas é uma tristeza quando arrastam a imagem da Religião que professam com os seus erros. Um grande beijinho!